Dimensões Determinantes da Saúde-Doença-Cuidado:
Causação Biológica, Determinação Social, Produção Cultural, Construção Política, Invenção Simbólica
Causação Biológica, Determinação Social, Produção Cultural, Construção Política, Invenção Simbólica
Naomar de Almeida Filho
Carmen Fontes Teixeira
Luis Augusto Vasconcelos
A noção de um campo social-histórico chamado de Campo da Saúde, onde os fenômenos da saúde-doença-cuidado ocorrem concretamente, permite reconhecer um variado repertório de dispositivos e processos de produção de conhecimentos, técnicas e práticas capaz de alimentar intervenções preventivas, curativas e reabilitativas sobre riscos e doenças, além de ações protetoras e fomentadoras da saúde na sociedade.
Num primeiro momento, predomina nesse campo um modelo preventivista de atuação (Leavell & Clark, 1976), com base no conceito de prevenção primária. Nesse sentido, prevenção implica eliminação, redução ou controle das causas das doenças ou problemas de saúde, na fase pré-clínica, antes do aparecimento de sinais ou sintomas, com a finalidade de impedir ou minimizar a sua ocorrência. Os outros níveis de prevenção destinam-se a abreviar curso, melhorar prognóstico, reduzir complicações, danos, letalidade ou sequelas resultantes de processos patológicos.
Num segundo momento, no Campo da Saúde, um modelo de promoção da saúde torna-se dominante. Esse modelo inicialmente prioriza a ação difusa, sem definir agravo ou risco específico como alvo determinado, buscando uma melhoria global no estado de bem-estar ou qualidade de vida. Posteriormente, valorizam-se ações de proteção e precaução no campo da saúde, com base em estratégias de caráter defensivo, no sentido da construção de cenários antecipatórios a fim de proteger indivíduos ou grupos contra doenças, agravos ou danos possíveis ou projetados.
A estratégia de prevenção em saúde opera na ordem da necessidade, assentada em modelos da causalidade e cuja intervenção mais específica implica uma modelagem reduzida da realidade. Por sua vez, a proteção à saúde como estratégia foi historicamente construída como campo de práticas plausíveis, tendo como base a intervenção eficaz demonstrada do modo dedutivo ou experimental.
A estratégia de precaução em saúde acolhe modelos de imprevisibilidade de eventos, incorporados nas teorias da complexidade como emergência e na filosofia como contingência. Trata-se da ocorrência de um evento que faz cessar, interrompe bruscamente, um estado anterior, mas que, em conformidade com o real, não se inscreve como previsão. Poderá ser, retroativamente, integrado à cadeia significante como suporte para estratégias fomentadoras de ações globais de supervisão e vigilância.
Integra-se, dessa maneira, às práticas atualmente denominadas de promoção da saúde, destinadas a detectar, compreender e significar emergências-ocorrências-contingências para, com isso, reconhecer (para fazer cessar seus efeitos) eventos similares futuros (Almeida-Filho & Coutinho, 2007). Nessa perspectiva, os conceitos de emergência ou contingência articulam acontecimentos dos quais podemos apenas constatar efeitos e, na impossibilidade de propor medidas de ação retroativas, indicar formas precaucionárias de base analógica.
O conceito de saúde empregado para a definição de cada uma dessas estratégias e suas respectivas ações (com sinais, dispositivos, alvos etc.) é definidor dos critérios de avaliação do seu impacto sobre a situação de saúde. Assim, o modelo preventivista rege-se por uma concepção de saúde como ausência de doença, posto que será sempre necessário referir-se à doença e ao risco quando se orientam ações no sentido de preveni-los.
Ratificando a centralidade do conceito de Risco no campo disciplinar da epidemiologia, o conceito correlato ‘fator de risco’ subsidia tecnologias de controle de doenças que permitem operacionalizar a prevenção primária. A noção de ‘marcador de risco’, por sua vez, articula-se à vigilância de grupos de risco e à identificação precoce de casos nas ações de prevenção secundária.
Em contrapartida, a noção de proteção da saúde fundamenta-se em um conceito estrutural de risco como possibilidade, enquanto o modelo de prevenção baseia-se no conceito epidemiológico de risco como probabilidade. Modelos de proteção e promoção da saúde somente se viabilizam com base em concepções positivas da saúde, tanto no sentido individual quanto no sentido coletivo.
A categoria de causação, criada quase que sob medida para operar modelos explicativos de patologia, doença e normalidade, é de reduzida utilidade para a compreensão do complexo saúde-enfermidade-cuidado.
Mais ainda, a doutrina substancialista e o dispositivo heurístico de determinação mecânica linear, definidores do causalismo, não dão conta do problema da determinação quando o conceito de saúde passa a designar um objeto plural, mutante, relativo e não-ontológico.
A tese central deste texto é a seguinte: precisamos ampliar o escopo da teoria de determinação de processos e vetores da saúde-doença-cuidado, diversificando-a em conceitos alternativos ou categorias particulares. Nesse sentido, em vez de simplificar a realidade de saúde reduzindo-a a um fluxo causal de eventos ou mesmo a um conjunto de determinações, devemos falar de diferentes categorias de ocorrência, referidas a distintos níveis, dimensões ou faceta do objeto complexo da Saúde.
A fim de avaliar a pertinência dessa tese, vamos inicialmente revisar a doutrina clássica do causalismo, de origem aristotélica e base cartesiana. Em seguida, analisaremos a teoria de determinação de Bunge, base do pluralismo metodológico que tanto influenciou a conformação epistemológica da saúde coletiva brasileira. Em terceiro lugar, discutiremos as abordagens construtivistas definidoras das escolas interpretativas da sociedade e da cultura, focalizando os conceitos de produção cultural e invenção simbólica. Em quarto lugar, a partir desses referenciais teóricos, vamos revisar criticamente os conceitos de construção social e prática política, que têm sido influentes na formação do pensamento estratégico no campo da Saúde no Brasil. Apresentaremos, em conclusão, nossa proposta de sistematização e justificativa de um marco conceitual diferenciador de distintas categorias de determinação: ‘causação biológica’ das doenças, ‘determinação social’ da situação de saúde, ‘produção cultural’ das práticas de saúde, ‘construção política’ das intervenções em saúde, ‘invenção simbólica’ dos sentidos da saúde.
Causalismo
A grande obra de Aristóteles, traduzida pela filosofia árabe e acolhida pela escolástica da alta Idade Média, constitui a principal raiz lógica do pensamento científico que emergiu após o Renascimento. A teoria aristotélica do Ser compõe-se de três proposições sobre a existência dos entes na linguagem e no mundo que, posteriormente, foram reunidas como princípios da lógica formal:
i. princípio da identidade (o Ser é igual a si próprio: A=A);
ii. princípio da não-contradição (o Ser é diferente do que não é ele: A # ØA);
iii. princípio do terceiro excluído (o Ser é ou não é; verdadeiro ou falso: A é V ou F; A nunca pode ser, ao mesmo tempo, V e F).
A epistemologia dominante na ciência moderna articula a teoria do Ser com a teoria aristotélica das Causas, que introduz uma tipologia bastante conhecida no campo pedagógico da metodologia da pesquisa científica:
1. Causa material; o substrato concreto da coisa.
2. Causa final; o objetivo da coisa.
3. Causa formal; a coisa, como princípio e determinação.
4. Causa eficiente; o elemento produtor (fator) da coisa.
A base filosófica dos discursos naturalistas sobre a ciência elaborados pelos pioneiros pesquisadores e pensadores foi sintetizada na obra cartesiana, marco da abordagem epistemológica que viria a dominar a racionalidade científico-tecnológica da Modernidade. Em “O Discurso do Método”, René Descartes (1596-1650) apresenta uma espécie de guia ou manual para que qualquer pessoa possa ascender ao conhecimento racional. O método dito científico compreende uma maneira de a ciência superar o estatuto de saber exclusivo de alquimistas, sábios e eruditos. A possibilidade de o conhecimento deixar de pertencer somente a iniciados, àqueles que participam da elite da produção de saberes socialmente legitimados, é um passo importante na história da humanidade.
A analítica cartesiana (Descartes 1979) é bastante conhecida. Compõe-se de quatro regras: A primeira regra consiste em aceitar como verdadeiro somente o que se conhece de modo evidente, quer dizer, excluindo qualquer dúvida. A segunda: cada problema pode ser solucionado separando-o em tantas partes quantas seja possível ser dividido. Identificar, isolar e descrever essas partes significa conhecer o problema (nós fazemos isso na maneira de analisar, que etimologicamente quer dizer dividir). A terceira regra: conduzir os pensamentos em ordem, começando pelos mais simples e fáceis de conhecer, a fim de ascender pouco a pouco até os conhecimentos mais compostos. Descartes não usou a expressão “mais complexos”, mas no pensamento cartesianismo encontra-se implícita a idéia de que a complexidade seria apenas a ascensão da simplicidade a partir de somatórias de componentes simples. E a quarta regra, a regra da metodologia: fazer sempre inventários tão completos e exaustivos que se fique certo de nada ter omitido, para que qualquer outro possa repetir o processo de produção do conhecimento.
As implicações epistemológicas do cartesianismo também são bastante conhecidas por todos nós: objetivismo, simplicidade, disciplinaridade e causalismo.
O projeto de organizar a prática da ciência de modo rigorosamente natural, impessoal e objetivo resultou no princípio epistemológico do objetivismo. Trata-se da idéia de que a coisa a ser conhecida encontra-se tão distanciada de nós que pode tornar-se um objeto manipulável. E mais, que isso pode ser feito de um modo neutro, por sujeitos desinteressados e inspirados na busca do conhecimento verdadeiro pela neutralidade axiológica da ciência.
A simplicidade, o famoso princípio da parcimônia. Explica-se algo quando se consegue expressar, do modo mais simples possível, a lógica ou as regras de constituição daquela questão. E isso ocorre preferencialmente na linguagem matemática, que o cartesianismo considera como a linguagem universal da ciência. Para a análise de dados científicos, Descartes teve que inventar uma matemática que não existia no seu tempo. Foi precursor da moderna teoria das funções e traduziu a geometria em linguagem algébrica; além disso, inventou o calculo diferencial e integral e o sistema, que ganhou seu nome, de coordenadas cartesianas.
A ciência herdada de Descartes traz sempre a intenção de buscar uma equação que resolva (ou sintetize) o problema, conformando, em grande medida, o princípio da parcimônia. Tanto que alguns livros de filosofia da ciência apresentam quase como um axioma: “entre duas explicações para um mesmo fenômeno, a mais simples é a mais verdadeira”. Isso é um resquício dessa implicação epistemológica cartesiana.
A principal conseqüência institucional do cartesianismo é a disciplinaridade. No referencial cartesiano, conhecer é fragmentar, acumular e depois somar elementos, cada vez mais profusos e numerosos. Portanto, se a fragmentação tem essa possibilidade infinita, então não é possível a um único intelecto o controle do conhecimento, porque o conhecimento é crescente e cumulativo, excedendo a capacidade humana de armazená-lo e processá-lo. Por isso foi necessário territorializar o conhecimento. A definição da especialidade, seu conteúdo e suas fronteiras: eis a invenção da disciplina na ciência.
O causalismo é outra implicação epistemológica do cartesianismo, uma tomada de posição clara no projeto da ciência como uma busca metódica de causas. E onde é que se encontra o princípio causal nas regras do método? Na valorização da evidência. Descartes não trabalha diretamente com o conceito de experimento, ou de experimentação, mas em sua epistemologia já se encontra implícito o valor superior da produção experimental da evidência em relação a outras formas de aquisição do conhecimento. A evidência cartesiana não é só evidência de ocorrência, mas constitui evidência de origem ou, mais rigorosamente, de determinação.
Não obstante a consagração do uso, causalismo não é o mesmo que causalidade. Causalismo é uma doutrina, um modo de pensar a causa (BUNGE 1969). O mesmo pode ser dito da diferença entre racionalismo e racionalidade. O primeiro, uma doutrina que atribui aos fenômenos existência real e independente dos sujeitos; já racionalidades há diversas, dentre elas as epistemologias não-cartesianas que incluem a subjetividade, o erro e compreendem o conhecimento como construção de sujeitos e instituições (BACHELARD 1996).
No paradigma cartesiano, causa aparece como uma força, uma razão organizadora do mundo, externa aos objetos, para além e em torno dos eventos, movendo-os. Sobretudo, o nexo causal é pensado como uma conexão linear, não-complexa, unívoca e, enquanto tal, dimensionável. Esta propriedade de dimensionalidade justificaria o uso de operações de quantificação para descrever a natureza do nexo causal. Trata-se de uma propriedade genética dos objetos, assim como a sua entidade, ou a sua essencialidade, tanto como sua forma; um atributo destacável do objeto, e como tal descritível, vulnerável a processos de inquirição sistemática. Neste contexto, a investigação científica implica o estabelecimento de funções de determinação como descritores da natureza hipoteticamente causal dos nexos enfocados.
A validade da função determinante enquanto função causal não é dada imediatamente pela precisão dos procedimentos de medida empregados para estabelecê-la, nem pelo contraste frente aos modelos estatísticos de distribuição teórica de eventos usados para descartar explicações estocásticas de seleção amostral para padrões de dados peculiares. De fato, a validade das proposições de causalidade se constrói por meio de uma estratégia heurística denominada inferência, processo complexo de algum modo simplificado pela aplicação de critérios de causalidade a associações tipo exposição-doença (Weed 1986).
A lógica clássica concebe as relações entre partes e todo como de natureza meramente topológica (i.e. conteúdo-continente), porém a relação entre as partes é de mútua exclusão (externalidade) e, quando se aplica, de determinação causal. O subconjunto de causas, ou variáveis independentes (para usar uma terminologia corrente entre os metodólogos), deve ser claramente diferenciado do subconjunto de efeitos, as variáveis dependentes, também no sentido de evitar transgredir as regras lógicas de conexão. A lógica clássica considera que a determinação circular (ou de causalidade recíproca) constitui um paradoxo intolerável e, portanto, um efeito não pode em nenhuma hipótese ser a causa da sua própria causa (Samaja 1994).
Samaja (1994) comenta que as relações entre elementos constituem, portanto, relações de partes extra partes, ou melhor, relações de exclusão de partes alienadas de uma totalidade, frente à distinção entre causa e doença. Que os elementos sejam homogêneos ou diferentes entre si e que eles sejam componentes de um mesmo conjunto ou sistema de conjuntos é inteiramente dependente de um processo decisório operado pelos pesquisadores (enquanto membros de uma instituição sócio-histórica chamada ciência), e não resulta determinada primariamente pelos movimentos concretos dos elementos no sistema. Em qualquer aproximação teórica com um grau mínimo de esclarecimento, o todo enfim consegue ser reconhecido como mais que a soma das partes, porém a sua determinação poderá ser ainda identificada como a soma das determinações individuais (de natureza causal) de cada uma das partes isoladas.
O discurso médico contemporâneo aceita de bom grado a idéia de complicação entre os nexos de causa e efeito, assumindo que uma causa pode produzir muitas patologias e que uma mesma doença pode ter diversas causas. No entanto, no horizonte (ou no nível do imaginário científico corrente), o modelo explicativo correspondente alimenta-se ainda do sonho do efeito específico condicional a um dado subconjunto de causas (Vineis 1997), a ser “descoberto” pelo avanço da pesquisa científica.
Em outras palavras, não mais se postula a unidade e especificidade da causa, mas ainda a unidade e a especificidade de uma dada configuração de causas poderão dar conta do entendimento positivo da ocorrência dos fenômenos da saúde-doença. Em um sentido preciso, o termo “multicausalidade” nada informa em relação à natureza potencialmente complexa das conexões, ou funções de risco, em pauta. Tal proposta de multicausalidade, no sentido estrito de múltiplas causas para um dado efeito, não é capaz de superar o problema nodal desta lógica: os nexos do processo de determinação das doenças são ainda de natureza causal, enquanto fatores, sempre esperados como produtores específicos de efeitos.
No caso em pauta, a noção de efeito-especificidade é simplesmente transferida a um nível hierárquico mais elevado, do nexo de causa única à especificidade de um complexo de causas, como, por exemplo, nas “tortas” de causalidade de Rothman & Greenland (1998). Nesse sentido, ser uni ou multicausal é irrelevante para a classificação de qualquer modelo determinista, dado que o critério classificatório efetivo é a natureza do nexo que sintetiza a relação de determinação.
Como tal, a expressão “multicausalidade” não indica qualquer aumento substancial do nível de complexidade. Multiplicar causas e/ou efeitos em algum modelo explanatório não resolve as limitações fundamentais do causalismo, e nada nos diz em relação à natureza potencialmente rica e diversa das funções de risco (Vineis 1999). Tal abordagem, ainda num sentido preciso, porém restritivo, refere-se exclusivamente a complicação, e não a complexidade.
Neste momento, é preciso questionar a própria natureza dos nexos construídos pelo conhecimento sobre a saúde-doença, comumente designados pelo rótulo genérico de causa. A insistência dos poucos teóricos que se interessam em debater a questão da causalidade reafirma a intenção de uma tradução literal de associações pseudo-probabilísticas de risco como se fossem legitimamente relações de produção de efeitos, ou simplesmente causas. Esta tentativa de apresentar correlações entre variáveis como nexos causais entre fenômenos concretos, que termina por tomar a causa como um processo natural (e, por conseguinte, anistórico), é aparentemente simplória e fácil de refutar. Porém rapidamente constatamos que não é bem assim, já que tal abordagem representa a aplicação de uma teoria de causalidade baseada no senso-comum típico da cultura ocidental na modernidade tardia (BECK 1996).
Não obstante, se:
i) conceituarmos os fenômenos da saúde-doença-cuidado enquanto processos sociais [pois o bio do biológico encontra-se inapelavelmente submetido ao social que o nomeia e descreve, portanto bio+lógico];
ii) e também aceitarmos o pressuposto de que os processos sociais são corporais, históricos, complexos, fragmentados, conflitivos, dependentes e incertos (em uma palavra: contingentes);
então os modelos causais, significando estruturas de determinação produtoras de efeitos específicos, serão os dispositivos heurísticos menos adequados para a referenciação de tais objetos.
Teoria da Determinação
Mário Bunge, filósofo, físico e matemático argentino, radicado no Canadá, em um importante texto, intitulado El Principio de la Causalidad en la Ciencia Moderna, propôs distinguir causalidade (que é uma propriedade ontológica dos seres) de causalismo, definido como a doutrina que admite essa propriedade. Isso implica, por exemplo, acreditar que todos os seres existentes se relacionam por meio de algum nexo que os produz, ou seja, significa a eles atribuir propriedades genéticas (Bunge 1969). Não se trata de uma questão menor. Para se conhecer uma garrafa de água vamos ter que descobrir de onde ela veio, o que a produziu, onde e como foi feita. Então, assim como tem uma forma, como tem uma função, uma aparência, uma textura, vários atributos enfim, ela terá uma propriedade genética que é sua causalidade. E o causalismo é a doutrina que justifica imaginar que tudo no mundo carrega esse atributo e que é trabalho da ciência identificar tal propriedade em todos os seres e fenômenos estudados.
A distinção proposta por Bunge se desdobra na constatação de que a doutrina que pressupõe uma propriedade ontológica permite várias formas possíveis de pensar a gênese dos fatos, processos, fenômenos, na natureza, na sociedade, na cultura, na história. Bunge avança ao propor que designemos o genérico genético como determinação, sendo a determinação causal uma das suas modalidades, mas não a única. Assim, devemos entender o mundo não somente como produto de causas operantes e efeitos resultantes, mas podemos contar com formas alternativas para avaliar a ocorrência dos fatos.
Bunge propõe várias modalidades de determinação: a modalidade causal, que é a noção de causalidade padrão; a modalidade probabilística, que equivale ao conceito de risco; a modalidade estrutural, que opera pela produção de modelos topológicos e que se refere a lugares ou tópos; a modalidade interativa, que representa esses nexos não como dirigidos, não como vetoriais, e sim, como interdependentes; e também a modalidade que ele chamou de dialética, que é a determinação do ser por si mesmo, quer dizer, a determinação do que está no mundo como matéria é a própria matéria, que a todo momento se transforma. Cada uma dessas modalidades de determinação propicia distintos modelos de compreensão do mundo a elas equivalentes.
Posso, por exemplo, entender a presença de enfermidade numa dada região, aplicando um modelo causal de etiopatogenia mediante agentes microbianos ou físico-químicos. Também podemos dar uma explicação para essa presença, com base em posições sociais, pela diferença de idades, de gênero, de profissão ou de intenção. Em suma, a explicação para uma simples presença por essa via pode ser uma explicação estrutural com base na inserção pessoal e institucional de cada um e, nesse caso, ela não é mecânica, não é causal, não faz parte de um processo. Mesmo assim, temos todo o direito intelectual e heurístico de entendê-la dessa maneira. A modalidade interativa, ou a modalidade dialética da determinação, no sentido que propõe Bunge, não é a mesma dialética hegeliana ou pós-hegeliana de Marx-Engels. Bunge entende como determinação dialética a autotransformação. Por exemplo, a presença de patologia no corpo humano pode se explicar como transformação de cada um, o que corresponde a pelo menos um processo interno de mudança de cada um como ser histórico.
Para abordar o problema da determinação do objeto complexo saúde-enfermidade-cuidado, analisemos o fundamento lógico-epistemológico deste modo de raciocinar, destacando quais são as operações metafóricas fundamentais que o viabilizam. O termo “pressuposto metafórico” refere-se a figuras (ou elementos imaginários) que em princípio se tem necessariamente que imaginar a fim de operar (e enxergar, compreender, seguir, interpretar etc.) no interior do referencial de pensamento.
Os pressupostos metafóricos da lógica determinista são basicamente três: as metáforas de fluxo, evento e nexo. Em primeiro lugar, vejamos a metáfora pré-socrática de fluxo, aqui no sentido de assimetria, temporalidade, direcionalidade. Tomemos esta metáfora como basicamente uma expressão da representação espacial ou linear do tempo, característica fundamental do modo moderno de pensar apesar de constituir a lógica subjacente mais arcaica da nossa cultura (Fabian 1983). Uma determinada relação de ordem referida a uma seqüência dada de eventos, tomada como uma abstração espacial, tem sido designada como temporalidade, integrando-se na lógica conjuntista fundante do pensamento ocidental (Castoriadis 1982).
Por sua vez, a metáfora de evento carrega o sentido de algo discreto, no sentido de isolado, distinto, destacado, fragmento de uma realidade ampla e complexa. O mundo (real ou virtual) é metaforicamente traduzido como universo de entidades individuais que podem ser potencialmente incluídas ou excluídas de agregados chamados ‘conjuntos’. Um evento, para merecer esta designação, deve ser identificado enquanto tal, quer dizer, como diferente do resto das coisas, de todas as outras coisas, do que ele não é, do que o antecede, do que ele determina (Zourabichvili 1994); em uma palavra, deve ser visto como “outra coisa”. Apesar de que neste sentido os limites também são fabricados, para tornar-se um objeto de conhecimento a coisa-fato-processo-fenômeno terá obrigatoriamente que ser isolada de um todo (ainda) indiferenciado.
A operação mais fundamental (embora aparentemente óbvia) e de fato indispensável para se pensar a causalidade consiste na distinção entre causa e efeito. Articulando diretamente as teorias aristotélicas do Ser, do Evento e da Causa, é preciso que a causa, o evento C (chamemos de antecedente, determinante), seja distinto do restante das coisas, diferente do indiferenciado:
C tem de ser diferente de ØC (não C).
Da mesma forma, algum outro evento significativo chamado D (de doença, outcome, efeito), deve também ser diferente do resto, do todo indiferenciado do qual ele faz parte, do ØD (não D). Ora, C como parte de ØD e D como parte de ØC são diferentes entre si. Portanto, têm sua própria identidade definida em relação à identidade do outro, sendo ambos distintos e não redutíveis a [ØD, ØC], por suas próprias definições e propriedades enquanto eventos isolados.
Num modelo causal, C será sempre diferente de D, e nunca deverá ser confundido ou reduzido a D. Conclusão: a distinção entre causa e efeito é construída através desta operação elementar, sem o que tais termos jamais encontrariam sua identidade e seu lugar preciso na esfera da referenciação causal.
Examinemos a terceira metáfora, a noção de nexo. Neste sentido, nexo implica re-união de um antecedente causa com um conseqüente efeito (que chamamos aqui D, de doença). Matematicamente, a ocorrência de um dado evento D em função da sua causa C é definida a partir da seguinte forma geral: D = f (C). O nexo C-D é um laço, ligação, relação, conexão, vínculo entre eventos que, anteriormente separados, precisam reunir-se naquela totalidade que se constrói como conhecimento científico. Para definir esta reunião como uma causa, deve-se necessariamente enunciá-la de dentro de um referencial extra-científico particular, o causalismo.
Produção cultural e invenção simbólica
Abordagens construtivistas definidoras das escolas interpretativas da sociedade e da cultura.
Crítica dos Conceitos de Prática
de construção social, prática política.
Categorias de Determinação
Apresentaremos, em conclusão, nossa proposta de sistematização e justificativa de um marco conceitual diferenciador de distintas categorias de determinação: ‘causação biológica’ das doenças, ‘determinação social’ da situação de saúde, ‘produção cultural’ das práticas de saúde, ‘construção política’ das intervenções em saúde, ‘invenção simbólica’ dos sentidos da saúde.
Aplicando de modo livre tal abordagem pluralista ao nosso tema, propomos que o campo da saúde resulta da determinação (no sentido amplo) de processos e vetores de desigualdades sobre a saúde-doença-cuidado que podem ser referenciados pelas seguintes categorias particulares de processos determinantes:
1. ‘causação’ biológica de processos patológicos individuais;
2. ‘determinação’ social da situação e das condições de saúde;
3. ‘produção’ cultural das práticas de saúde;
4. ‘construção’ política das instituições de saúde;
5. ‘invenção’ simbólica dos sentidos da saúde.
Do ponto de vista da determinação da social da situação e das condições de saúde, mais importante que formalizar rigorosamente métodos para medir desigualdades em saúde certamente será compreender suas raízes e origens.
Sobre essa plataforma conceitual, então podemos adicionar à questão da determinação da saúde os importantes temas da ‘produção’ das práticas, ‘construção’ das instituições e da ‘invenção’ dos sentidos da saúde.
O diferencial semântico sugerido entre os termos ‘determinação social’, ‘produção cultural’, ‘construção política’ e ‘invenção simbólica’ corresponde, numa perspectiva epistemológica mais consistente, a diferentes planos de realidade e distintos efeitos da estrutura de desigualdades que, no cotidiano das sociedades contemporâneas, tornam-se permanente fonte de injustiças e iniquidades.
Comentários Finais
Conforme analisado em diversas oportunidades, o projeto quiçá mais importante em curso neste momento tem sido reconfigurar o objeto ‘saúde’. Esta é uma oportunidade para conceber o complexo ‘saúde-doença-cuidado’ numa nova perspectiva paradigmática, capaz de subsidiar políticas públicas saudáveis e participação da sociedade nas questões de saúde, condições e estilos de vida. Isso implica a construção de um marco teórico-conceitual capaz de reconfigurar o campo social da saúde, atualizando-o face às evidências de esgotamento e crise do paradigma científico que sustenta as práticas de saúde pública (Paim & Almeida-Filho, 2000).
Não obstante seus limites, essa proposta pode ser útil para o necessário debate teórico-epistemológico sobre a noção de integralidade das ações de saúde como estratégia de interferência na complexa problemática da conjuntura sanitária brasileira neste início do milênio.